1- Quer fazer um brilharete a discutir a cópia privada? Então deixe de confundir cópia privada e pirataria. A cópia privada é uma exceção prevista à lei de autor que torna legal a réplica de uma obra, desde que seja feita para fins privados – e, portanto, sem propósitos comerciais. Um exemplo: quer copiar o “Portrait in Jazz” do Bill Evans para ouvir no carro? Sim, pode fazê-lo à vontade ao abrigo das exceções que Portugal adotou da diretiva europeia 2001/29/CE, que regula a cópia privada.
Agora imagine que prefere fazer o upload de “Portrait in Jazz” para que toda a gente possa fazer cópias não autorizadas na Internet. Bom, isso é pirataria – e pode valer uma pena máxima de três anos de prisão. Para que não haja dúvidas, resta lembrar que cópia privada é legal, mas só porque o Estado aplica taxas aos suportes capazes de armazenar cópias ou equipamentos que permitam fazer essas mesmas cópias (mesmo que esses suportes e equipamentos não tenham qualquer cópia armazenada).
Pormenor importante, que marca todo o debate em torno das taxas: nada garante que um consumidor compra um CD virgem ou um disco rígido para armazenar cópias de obras protegidas pelos direitos de autor – no limite, esses dispositivos podem ser usados exclusivamente para armazenar as fotografias das férias de família… o que não invalida a aplicação de taxas a esses dispositivos.
Em resumo: as taxas têm em conta a tecnologia e a capacidade de armazenamento dos diferentes dispositivos, mas é a possibilidade de fazer cópias privadas que determina a aplicação. Se é justo ou não, já será assunto de debate entre críticos e defensores das taxas debaterem.
2- Hoje, os portugueses já pagam taxas a título de compensação de autores e produtores. As taxas variam entre um euro para um DVD-RAM virgem e os 14 cêntimos para as cassetes áudio virgens. Quem é que ainda usa cassetes áudio? A resposta à questão ajuda a perceber a intenção do Governo em avançar com uma proposta de lei: hoje, vigora uma lei que remonta a 2004, e que já havia demorado a ser aplicada. Entretanto, os consumidores migraram para outras tecnologias. Resultado: ninguém usa cassetes de vídeo ou de áudio, mas quase toda a gente usa cartões de memória, pens USB, discos rígidos e (cada vez menos) DVD e CD.
A proposta de lei da Secretaria de Estado da Cultura quer alargar as compensações às novas tecnologias de armazenamento, não só porque tem de dar seguimento a uma diretiva europeia, mas também para adequar o âmbito das taxas às tendências de consumo da atualidade. Os defensores das taxas consideram que é uma questão de justiça que põe termo à situação caricata de apenas serem taxadas tecnologias que estão em desuso; os críticos da proposta de lei recordam que, mesmo antes de entrar em vigor, a lei está desatualizada porque uma parte considerável dos consumidores prefere armazenar as cópias das obras que compraram em servidores disponibilizados por terceiros na Internet.
A polémica tende a adensar com o crescendo de popularidade de serviços de transmissão de vídeo e música através da Internet e serviços de TV pagos, que não exigem o armazenamento de cópias nos computadores ou nas boxes dos utilizadores e cujas licenças de transmissão já foram pagas por operadores de TV e serviços de streaming antes de chegarem a casa do consumidor (e que levaram os operadores de telecomunicações a protestar contra a iniciativa).
3- A proposta de lei da cópia privada alarga as taxas a quase todos os equipamentos que permitem replicar ou armazenar vídeos, software ou música. Com a proposta, pens USB, cartões de memória, discos rígidos, telemóveis, boxes de TV, telemóveis, computadores e tablets passam a pagar taxa. Em alguns casos é fixado uma taxa por equipamento, mas a maioria das famílias de equipamentos é taxada consoante a tecnologia usada e a capacidade de armazenamento (os valores vão dos dois cêntimos por GB a 20 cêntimos por GB). Tirando os 20 euros previstos para alguns modelos de multifunções (vulgo impressoras), a taxa máxima nunca supera os 15 euros.
4-Segundo a diretiva europeia 2001/29/CE, os Estados-membros são livres de aplicar exceções à regra que impede qualquer tipo de cópia não autorizada. A ambivalência da diretiva não tardou a produzir resultados nos diferentes Estados-membros. Dois exemplos: 1) em França, quase todos os equipamentos são taxados (nalguns casos a compensação chega a 125,77 euros); 2) durante os últimos anos, o Reino Unido optou por não aplicar exceções contempladas pela cópia privada. O que significa que todas as cópias estão proibidas, mesmo para uso privado – mas a verdade é que as autoridades locais pouco ou nada fizeram, nestes anos, para punir quem faz essas cópias. E a banalização da ilegalidade tornou-se … prática generalizada.
Recentemente, o governo britânico anunciou que iria mudar a legislação, no sentido de legalizar as cópias privadas, sem a aplicação de taxas de compensação. Mesmo nos restantes 22 países que adotaram as taxas há grandes diferenças: nem todos os equipamentos são taxados com os mesmos valores; alguns países optaram por não taxar alguns equipamentos de uso banalizado. Em Espanha, enveredou-se por um caminho diferente: não há taxas, mas mantêm-se as compensações, através de uma verba que consta no orçamento de Estado.
De acordo com o International Survey on Private Copying Law & Practice 2013, da Organização Mudial da Propriedade Intelectual, as taxas da cópia privada valeram 11 cêntimos per capita em Portugal no ano passado; o valor contrasta com os cinco cêntimos de Espanha e com os 2,65 euros de França.
5- Em 2012, António Vitorino, ex-governante português e europeu, elaborou um célebre relatório que alerta para os riscos de dupla tributação da cópia privada e para inexistência de dados que permitam contabilizar os prejuízos causados pelas cópias que os utilizadores fazem, sempre que pretendem copiar uma obra que compraram para os diferentes formatos e suportes tecnológicos. O relatório dava especial destaque a um fenómeno em crescendo de popularidade: a transmissão de música e vídeo através da Internet e serviços de TV pagos. Nesta modalidade de streaming e transmissão, as cópias não são feitas localmente (ficam nos servidores dos fornecedores e não nos computadores e nas boxes dos utilizadores) e, nalguns casos, o uso feito pelos consumidores é limitado no tempo e no espaço.
A este dado junta-se outro: os fornecedores dos serviços poderão já ter pago aos autores e produtores pelos direitos de difusão. Apesar de referido bastas vezes, o relatório de António Vitorino não tem poder de lei. Será a Comissão Europeia, que acaba de tomar posse, que vai decidir o que fazer de ora em diante. Recentemente, Jean Claude Juncker fez saber que pretende produzir nova legislação para os direitos de autor na era digital. Boa parte do futuro das taxas da cópia privada depende dessa nova diretiva. Entre o alargamento das taxas da cópia privada aos serviços de alojamento na Internet e o fim das ditas taxas, todos os cenários estão em análise.
6- As compensações da cópia privada são coletadas pela Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), que assume a responsabilidade de redistribuir o montante por autores, editores, produtores e intérpretes, de acordo com métodos estatísticos que têm em vista refletir níveis de popularidade e tendências de consumo. Em 2012, terão sido coletados mais de 1,1 milhões de euros; em 2013, o valor coletado desceu para 795 mil euros.
A proposta de lei da Secretaria de Estado da Cultura prevê a aplicação de compensações aquando da primeira transação efetuada em território nacional (tendo em conta que a maioria das tecnologias vem do estrangeiro, serão os importadores a desembolsar o valor). O IVA será depois estimado com base no valor do produto acrescido da taxa.
Nada obriga os revendedores e importadores a refletirem no preço final do produto a taxa e o efeito que produz no IVA – mas as associações que representam o setor já disseram que o vão fazer.
7- Em 2012, Gabriela Canavilhas, deputada do PS e ex-ministra da Cultura, assumiu a liderança do primeiro projeto de lei que tem em vista a atualização e consequente alargamento da taxas. O projeto passou numa primeira votação na generalidade, mas acabaria por ser abandonado no debate da especialidade por falta de concordância com os deputados do PSD e CDS-PP quanto ao texto final. Passados dois anos, a situação repete-se, mas com algumas diferenças: a iniciativa partiu do Governo, sob a forma de proposta de lei.
Trata-se de uma proposta porque regula uma matéria que, por ser de parafiscalidade, é da exclusiva responsabilidade da Assembleia da República. Tudo aponta que a proposta de lei que começa a ser debatida esta quarta-feira seja aprovada na generalidade esta sexta-feira. Uma ronda aos grupos parlamentares permitiu apurar a seguinte relação de forças: por norma, PSD e CDS-PP estão instruídos para aprovar as propostas do governo – e só em questões de consciência é atribuída liberdade de voto.
No PS, Gabriela Canavilhas, que vai liderar o debate, confirmou que vai votar a favor da proposta de lei, mas lembra que tem vários reparos políticos a fazer. O BE vai votar contra e recorda que o Governo já se opôs a uma proposta do PS “muito semelhante à que agora apresenta” e considera que a proposta de lei apenas pretende “disfarçar o enorme desinvestimento público na cultura”. O PCP não se chegou a pronunciar sobre o assunto quando inquirido, mas, mesmo que alinhe com o BE no voto contra, não conseguirá impedir a aprovação na generalidade.
Será que a proposta de lei vai entrar em vigor tal como está? É uma hipótese, mas tudo leva a crer que sofrerá alterações no debate da especialidade, que será levado a cabo por duas comissões parlamentares (Educação, Ciência e Cultura em conexão com os Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias). Curiosamente, tudo aponta para que, a haver alterações, sejam os deputados do CDS e do PSD a introduzi-las. E isto porque, por mais de uma vez, rostos conhecidos dos dois partidos já criticaram a iniciativa governamental.
O secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, acredita que a proposta de lei entrará em vigor em 2015. Um deputado que prefere não ser identificado admitiu que é possível passar a lei “em três ou quatro meses”, mas também recorda que tudo depende da “vontade política com que o assunto for tratado na Assembleia da República”.