Talvez faça sentido criar um algoritmo para Magrethe Vestager, mas não seria a mesma coisa. A começar pelos olhos azuis brilhantes, que se fixam no interlocutor, prosseguindo pelo cabelo curto que parece reforçar a ousadia, e os ténis que comprovam que está decidida a fazer o caminho que for preciso. Um algoritmo não teria aquela voz de contralto com falas ponderadas, mas sem hesitações e desculpas de última hora. E possivelmente, Tim Cook, Jeff Bezzos e a dupla Bryin e Page deixariam de ter pesadelos sempre que adormecem a pensar no que acontece com os negócios da Apple, da Amazon ou da Google na UE. Ou não fosse Vestager a comissária Europeia da Concorrência – e a responsável por alguns dos inquéritos e multas mais chorudos alguma vez lançados contra o empório digital de Silicon Valley.
Mas a questão mantém-se a pairar por um pequeno lapso, até Vestager, com o mesmo à vontade que aponta a Apple como um exemplo de fuga aos impostos, admitir que nunca tinha pensado no assunto. «Sim, talvez faça sentido criar um algoritmo para mim».
O sorriso é largo e tem a naturalidade estudada dos políticos perante as câmaras – mas a resposta faz tanto sentido como a própria necessidade de criar um algoritmo que seja capaz de ajudar Magrethe Vestager a exercer o escrutínio da concorrência na UE. Até porque estamos na economia digital – quase tudo está em vias de se resumir ao algoritmo. E Vestager sabe disso.
«Quando temos máquinas que conseguem aprender, não é suposto que elas aprendam as táticas dos velhos cartéis. As máquinas têm de saber também respeitar as leis», atira repetindo a ideia proferida momentos antes, no palco principal do Web Summit, na manhã desta segunda-feira.As caixas negras não merecem maior consideração que os algoritmos escravizados por oligopólios económicos. «Há um paradoxo de que o que acontece dentro da caixa negra fica na caixa negra. Aconteça o que acontecer com o algoritmo – há uma pessoa que é responsável por isso», reitera a Comissária da Concorrência.
No palco, perante os milhares de jovens candidatos a empreendedores, o tom foi mais de evangelização. Talvez Magrethe Vestager, a filha de pessoas politicamente ativas, que foi vice-primeira-ministra da Dinamarca, e que inspirou uma série de TV sobre a ascensão de uma mulher na política nórdica, saiba que tem aquela estrelinha que a distingue da maioria dos comissários europeus cinzentões que só são conhecidos nos países de origem – e nem sempre por terem deixado obras de monta no passado.
Vestager vale a plateia cheia – nem que seja por mostrar a robustez política necessária para enfrentar os maiores colossos tecnológicos do outro lado do Atlântico. Na conferência de imprensa, com vários jornalistas americanos e ingleses, irrompe a sensação de ouvir a melodia da nona sinfonia de Beethoven que hoje serve de hino à UE. Afinal são apenas as palavras da comissária: «Temos recebido queixas dos EUA, mas a nacionalidade dos queixosos não é importante. O que é importante é o mercado em que essas atividades aconteceram».
No palco principa da Web Summitl, Vestager sabia bem que tinha pela frente jovens que compram telemóveis Apple, fazem pesquisas na Google, recebem encomendas na Amazon, e trabalham com sistemas operativos da Microsoft. O que não impediu de deixar mais uma alfinetada numa gigante dos EUA: «Quantas pessoas aqui foram alguma vez à quarta página dos resultados de pesquisas da Google?». Num relance rápido apenas se consegue ver uma única mão no ar, entre dezenas de milhares de pessoas. «Quantos de vocês gostariam de estar na quarta página de resultados da Google?». Aparentemente, ninguém levanta a mão.
Em silêncio, a plateia mostrou que percebeu o que estava em causa. Quarta página dos resultados de um motor de pesquisa é terceira divisão, é abaixo de cão, é insignificância, é a morte comercial a prazo. E foi também esse o tratamento que a Google, no entender da Comissão Europeia, terá aplicado aos concorrentes em diferentes serviços digitais (comparadores de preços; e lojas de apps para Android, como a portuguesa Aptoide que engrossou a lista de queixosos contra as práticas da gigante da Internet). O que motivou o anúncio de uma mega-multa daquelas que mais parecem gralha dos jornalistas que as escrevem: de 2,42 milhões de euros que a Google terá de pagar se não encontrar um argumento suficientemente forte nos tribunais que consiga desfazer a decisão de Vestager.
Aos empreendedores e wannabes deixa mais um recado: «todos aqui querem ter o sucesso do Google e não temos nada contra que a Google lidere o mercado – apenas não queremos que essa liderança seja usada para esmagar outros, porque não consideramos que deva ser a dimensão a razão do sucesso – mas sim o mérito».
Qualquer revolucionário bem intencionado poderia ter dito o mesmo – mas Vestager prefere fazer os cortes que tem de fazer dentro do sistema. Um exemplo: quando um dia denunciou o mosaico fiscal da UE que permite que alguns países, a troco de descontos ou mesmo borlas, fiquem com o dinheiro que deveria ser taxado noutro estado membro da UE, recebeu a resposta de um colega da Comissão Europeia, que logo lhe disse que isso era assim há muito tempo e que não ia conseguir fazer nada. Até que surgiram os LuxLeaks, e depois os Panama Papers… e por fim a Apple veio à tona, como um navio afundado na pré-história financeira. Um escândalo que já remonta a tempos em que, provavelmente, alguns engenheiros que ajudaram a criar o iPhone ainda andavam a brincar aos playmobis. E que terá beneficiado a Apple em 13 (sim, treze) mil milhões de euros de impostos que deveriam ter sido pagos desde o final dos anos 1980 e 2014 – e que não foram cobrados na Europa, na África e no Médio Oriente porque o governo irlandês criou condições fiscais mais favoráveis.
Talvez Margrethe Vestager não o admita – mas não é preciso ser um especialista em política europeia para perceber que, se a Comissária Europeia não consegue vencer esta disputa, ficará remetida a um longo e profundo coma político. E a própria Comissão Europeia ficará em xeque, caso não consiga impor-se perante a sub-reptícia chantagem da Casa Branca e de Silicon Valley que têm como maior trunfo o facto de a vida na Europa como a conhecemos hoje depender em grande parte de sistemas operativos, apps, redes sociais, telemóveis e computadores desenhados ou produzidos nos EUA. O mesmo executivo de Bruxelas não ficará muito melhor se ceder às renitências do Governo irlandês, que por egoísmo político ou instinto de sobrevivência, começou por dar sinais de não querer acatar a decisão anunciada por Bruxelas.
«Não tenho indicação de quanto tempo levará a recuperar o dinheiro da Apple (que escapou aos impostos e que o governo irlandês terá agora de cobrar)», começa por dizer a comissária. «No passado, já os holandeses e os luxemburgueses o fizeram, e esperamos que os irlandeses também o façam», conclui depois.
O tempo exigidp para estes processos não a assusta. Aparentemente, não falta parcimónia para dar os passos necessários – e de submeter as suas decisões à justiça como, invariavelmente, acontece com os casos com as grandes gigantes tecnológicas. A forma de encarar o diferendo com a Apple não será muito diferente daquela com que lida com a líder dos motores de busca: «Quando iniciámos o processo da Google, já sabíamos que iria manter-se muito tempo nas nossas secretárias», conclui.
A espera também compensa. Vestager menciona o colega Pierre Moscovici, comissário responsável pelas finanças e pela economia, e «várias vontades» com propósito de criar uma plataforma mais justa que acabe com a desigualdade fiscal, mas os olhos azuis da comissária não escondem o brilhozinho ao constatar que a UE seguiu no caminho em que acredita: «na próxima primavera a Comissão Europeia já terá uma proposta de lei (para harmonização de impostos) para levar a debate».
Talvez nessa altura, cada multinacional já seja obrigada a publicar negócios e números de trabalhadores em cada país, como a Comissária Europeia da Concorrência aponta como o padrão de transparência a seguir nos próximos tempos. Em Silicon Valley, as insónias podem estar apenas no início.